Imagine passar quase sete décadas sem existir oficialmente para o Estado. Sem certidão de nascimento, sem identidade, sem nome ou sobrenome. Essa foi a vida de Maria Imaculada Conceição. O nome foi escolhido por ela mesma, bem como o seu dia do seu nascimento: 8 de dezembro, data em que os católicos comemoram a devoção à santa. O ano é 1957. Mas é uma estimativa, pois dona Conceição também não sabe quantos anos tem, o dia do aniversário e não tem nenhuma lembrança ou informação sobre seus pais.
A vida da Conceição começou a mudar no dia que ela adoeceu. Preocupada, uma vizinha falou para ela procurar um médico e foi aí que percebeu que a idosa não tinha nenhum documento. “Ela disse que não tinha ido ao posto porque não tinha nenhum documento e não seria atendida. Conversando mais, eu entendi que ela não tinha nenhum documento mesmo, nem o registro, nunca teve. Foi quando eu resolvi ajudar e fui com ela à Defensoria Pública”, explica a amiga Cláudia de Araújo.

O caso chegou à Defensoria Pública do Ceará, por meio da sede de Caucaia, que ingressou com ação judicial para lavratura tardia do registro de nascimento. O pedido foi deferido pela Justiça, e desde o último 12 de agosto, dona Conceição tem em mãos a sua primeira certidão de nascimento. “Quando eu nasci, onde eu nasci e quem são os meus pais, eu não sei. Resumindo, eu não sei nem quem sou eu. Eu não sabia, mas agora sei”, alegra-se.
Hoje, Conceição fala em sede de viver. Quer ir ao médico, tomar as vacinas que nunca tomou, estudar e ter acesso a direitos básicos. Depois de décadas de invisibilidade, sente que deixou de ser inexistente para o mundo. “Tanta gente em boas condições passaram pela minha vida, mas ninguém me ajudou com isso. Teve quem prometeu, quem também não voltou, mas a Cláudia me ajudou, eu sou muito agradecida a ela. E agora eu quero ir em uma escola. Eu nunca entrei em uma”, disse esperançosa.

Com a certidão de nascimento finalmente em mãos, Dona Conceição deu os passos seguintes para existir por completo. Na última semana, recebeu sua primeira carteira de identidade com CPF. O defensor público Fernando Régis, que iniciou o atendimento do caso, ressalta que a situação da dela expõe uma realidade pouco visível, mas urgente, o registro tardio. “Temos uma enorme população fantasma em nosso país, pessoas sem nome, identidade e acesso a serviços públicos, que são verdadeiros sobreviventes e guerreiros. Não sabemos quantas Conceição ainda estão espalhadas, esperando por resgate”, afirmou.
A defensora Beatriz Fonteles, que acompanhou a audiência na Vara Cível de Caucaia, conta que se emocionou quando a assistida relatou sua história perante a magistrada. Se tratava de uma situação fora do comum. “Foi uma audiência muito sensível. Quando a gente se depara com situações assim, sabemos que pessoas nessa condição extrema de vulnerabilidade, não procuram a Defensoria por conta própria. Só chegam até nós quando alguém se compadece e as traz pelas mãos, como fez a Cláudia. Precisamos ampliar as estratégias de busca ativa para alcançar quem sequer sabe que tem direito de existir no papel,” reflete a defensora.
A atuação da Defensoria nesses casos só é possível em virtude das parcerias institucionais. “A Defensoria busca diariamente assegurar visibilidade a esta população que existe e clama por justiça e dignidade. Centro Pop, Creas, Cartório, Pefoce, Arquivo Público e igrejas, agradeço todos que trabalham em sinergia para devolver dignidade a quem nunca a teve no papel”, expressa o defensor público Fernando Régis.
A data escolhida para ser o aniversário da Dona Conceição, 8 de dezembro, é quando também se comemora o Dia da Justiça. Uma feliz coincidência de quem passou a existir oficialmente justamente na data em que o país celebra a função que deveria garantir dignidade a todos. Mais do que um registro, é uma reparação.





